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O Menino na Chuva - Uma Homenagem a Ranossil - Poeta Picoense
Do tempo diziam os helenos antigos : revela a semente, adoça o fruto e propicia a colheita. Distamos pouco da partida de Raimundo Nonato Ranossil da Silva, picoense, poeta do povo, homem ainda menino, colhido pelo seu tempo e cujo valor artístico ainda se revelará. Mas cá estou a testificar da sua grandiosidade ofuscada pela chuva de Pã (o álcool) que apagou a aquarela da sua vida mas não queimou suas sementes, não apodreceu os frutos do suor do seu rosto, nem permitirá que sua obra fique no olvido dos críticos conterrâneos.
Em março de 2005 estando em Picos fui à casa de sua mãe visitá-lo. Rompera com o mundo, a família e os amigos todos quase. Disse-me com os olhos infantis repletos de lágrimas : - Marconi, estou assim, como vê : abandonado, retornado à casa e às coisas da minha infância. Ao que lhe respondi sincero : - Ranossil, sua doença e sua cura estão em você, se ficasse quinze dias sem beber seria já o início do regresso a tudo que é seu, a tudo o que você foi. Ele ficou com o olhar mais distante ainda, parecendo tomado de uma inspiração. Planejou e prometeu que faria o concurso da Caixa, que recomeçaria. E três meses após, antes que eu retornasse a Picos, expirou. Aos treze anos comecei a trabalhar nas Representações Bezerra como officce boy e arquivista. “Toin Santos”, “Seu Toin” tinha um grande esmero pela contabilidade das suas empresas e já dera porta afora com mais de quatro contadores que a embaralharam , que rasparam no Razão, que macularam seus livros de escrituração mercantil, mas achava-se empolgado com o contabilista independente que escriturava com rapidez, correção,apuro, quase com arte, traçando as partidas nos seus Diversos a Diversos, às vezes em discordância com o empresário por razões quase de filosofia contábil (e geralmente ganhando a contenda e a admiração do patrão), esse era Ranossil: Contador, Flósofo Intuitivo e Poeta. Por aquele tempo as empresas tinham administração e clima familiar, rapidamente me integrei ao Clã dos Santos e logo privava com todos, particularmente com o contador. Eu que namorava Filosofia e Literatura era um dos poucos que se permitiam discordar dele conquistando sua admiração. Em visitas à sua casa conheci a melhor Música Popular Brasileira (Gil, Caetano, João Gilberto, os Caymmys, Chico Buarque, Taiguara, Milton Nascimento, Tim Maia, Jorge Ben) e também o clima de boemia dos apreciadores de samba como o Doutor João Graça, cardiologista baiano seu amigo , por sorte eu não bebia e assim permaneci. Íamos às pescarias na barragem de Bocaina, nos arrabaldes de Picos. Éramos amigos. Recém-casado com Dona Hailha, ele orgulhosamente comprava os móveis da casa. Num ano o casal teve seu primeiro filho Gil Ricardo“em homenagem a Gilberto Gil”, dizia o pai extremoso . Então ele me revelou o orgulho que tinha pela sua raça que também é a minha e a nossa . Falou-me longamente das suas incursões pela Grande Recife; do período em que fora coroinha, que não mais apreciava a Igreja (isto último declarava pelo sabor da polêmica pois sabia-me católico tradicional e posteriormente não obstou a que o segundo filho, Girlan- que hoje faz Agronomia, ingressasse no seminário, até orgulhava-se). Envolveu-se com o samba, no Morro da Mariana, com Mestre Neguinho e Lourinho fundou a Escola de Samba Império Serrano. Num clima de euforia encontrava-se amiúde com a bebida. E quando sua esposa reclamava ele dizia : - Não esquenta não Hailha, o Magrão aqui é meu anjo da guarda, se eu cair ele me leva (pois eu não bebia, mas gostava de o acompanhar nos bares aos sábados para ouvir-lhe as opiniões sobre poesia, Torquato Neto, política Apreciava também o seu gosto musical, pois dos bares sempre terminávamos na sua casa à Rua São Pedro e sua esposa zelosa nos aguardava com uma boa refeição). Nossos caminhos se desencontraram. Adolescente fui para a Capital. Ele publicou seu segundo livro “ Não Vejo o Oásis”. Sua primeira obra “ A Solidão, a despeito do título, era suave, cheia de reminiscências e docilidade. Quando voltei de Teresina eu já era um jovem homem, e ele enfrentava pequenos embaraços com o alcoolismo porém era um profissional de renomada e sua vida fluía com relativa tranqüilidade. Envolveu-se com a política, decepcionou-se. Os bons amigos foram se afastando à medida em que o álcool foi se fazendo mais presente. Restaram e se multiplicaram os amigos de ocasião, dos bares, dos fins de semana que foram adentrando pela semana. Fui ao lançamento do seu terceiro livro (Mentiras Grossas de Cazé e Gogó), muito bem acolhido e aclamado, todavia naquele opúsculo já estavam presentes os traços do álcool. A visão melancólica e poética do homem-menino podia ser encontrada no livro, entretanto abraçada com um linguajar desairoso que não era o seu, expressões que não eram do Ranossil que conhecíamos, eram traços de desaprumo que se faziam presente naquilo que ele tinha de mais nobre. Então o vício o tomou nos braços, desconchavos, desacertos, histórias embaralhadas foram apagando o Grande Homem, o Chefe de Família, o Intelectual que ele era. Amigo leal, quando meu pai faleceu, foi na casa de minha mãe, chorou com minha família e me disse: - Num liga não, Magrão. Num liga não ! Dói mas passa. Pai e marido amoroso, zeloso dos seus. Vaidoso da sua raça, com o seu terceiro filho repetiu a homenagem : Gilbran (que hoje faz Ciências Contábeis). Se o alcoolismo não o alcançasse, não o sufocasse, não o levasse, não colhesse o vigor do seu lar, a alegria da sua casa, se não o empurrasse pelas ruas, se não o afastasse dos seus amigos, dos seus compromissos, se não o afogasse, sabemos, Ranossil, que o menino revelado no “Solidão” estaria presente nos livros seguintes, que o grande contador seria o grande advogado (pois esse era o seu sonho e inteligência lhe sobrava ). Se a história da sua vida foi a repetição daquela de Lima Barreto, que a sua morte não silencie o grande que você foi, o grande que é na memória dos que o guardaram e o relembram como o menino, indefeso, na chuva malévola, que esconde o sol, que desfaz o barquinho de papel das nossas vidas.
Marconi Barros
Enviado por Marconi Barros em 02/06/2011
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