Abrão era um jovem incomum, gostava de vir ouvir falar Sêo Carlos desde que se dera o caso.

Sêo Carlos fora o primeiro e único Juiz de Paz do Jenipapeiro,  numa manhã o homem acordou sem visão.Excesso de leitura, disseram. Outros, castigo. Outros, a genética, referiram um bisavô que havia ficado cego em idade avançada.

Com a escuridão, a imobilidade. Implorou  à esposa, D. Ana, que não o deixasse de qualquer jeito. Queria estar sempre limpo e apresentável, queria honrar os cabelos e a pele branca de que tão bem cuidara.

Sêo Carlos não aderiu ao rádio, às calçadas ou à televisão mas passou dos charutos ao caximbo, ganhou uma bengala leve, incrustada de pedrarias plásticas.

Os amigos foram sumindo, depois os familiares, D. Ana foi cuidar das netas em Teresina. Acabou-se a novidade, agora as pessoas não queriam constranger o homem, ficava sozinho tateando as barbas ou Engrácia, a empregada trazida da Capital, esta nem reclamava, pois era muito feia e solitária, sentia-se mesmo importante ante as carícias inoportunas.

Abrão, não, aproximou-se do homem. Vinha ouvir-lhe lições de história o panorama pólítico, as excursões do velho nas capitais, ouvia-o falar do mar, das mulheres damas, mas só ouvia,  não tinha profundiade para conversar com o homem, sua mãe era professora municipal e o pai fora para São Paulo quando ela engravidara, isso foi logo que o Juiz de Paz chegara à cidade. O garoto tornou-se balconista da Padaria do Tomé.

Um dia seu Carlos roncou mais que o costumeiro, a empregada ouviu uns gemidos,  não fez caso, achando ser mais uma armadilha do velho. Morte. A filha única trouxe a mãe e as netas, foi um desespero.
A cidadezinha era um lamento só.

Abrao não foi para o trabalho, ajudava a vestir o velho para o último compromisso.

D. Ana velou o amado até a madrugada e ao entrar no quarto do casal para buscar as últimas lembranças  viu o jovem Abrão com os óculos escuros de grife que eram do falecido e julgou tê-lo  mesmo surpreendido num misto de ânsia, êxtase e leviandade  sorvendo com  a visão todas as peças de ocasião do guarda-roupa colonial do Juiz, o quarto cheirava a perfume francês. D. Ana recuou, saindo, pé ante pé, entre indignada e aliviada,  era este o filho que ele não tivera ?