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De D. Bilu para D. Carmem & Família
Que passaredo na casa nova! Gostou do chuveirão no quintal instalou sob esse uma preguiçosa. Todos os sábados, a princípio, esperava o nascer do sol ali, na preguiçosa, mas levantava muito cedo.
Primeiro, as corujas, depois o espetáculo dos galos e o céu principiava a esmaecer, as estrelas iam se apagando, surgia a barra e os passarinhos no quintal do vizinho. Havia ainda beja-flor no arremate das nove horas. Com o tempo foi abandonando o espetáculo celeste e se concentrou nos pássaros, o muro do vizinho era um pomar! Não tinha um centímetro de cimento, era tudo gramado. - Carmem, já reparou na casa do lado ? Parece um sítio ! - Meu Bem, você já reparou na quantidade de folhas secas no nosso quintal ? - Não, do quê você está falando ? - Você não reparou porque eu e os meninos é que pegamos todos os dias . - Lá vem você ! Sempre implicando . Reparou direito, viu que havia apenas quatro mamoeiros do vizinho que estavam inclinados para o lado de cá do muro. Fosse folha de tamarindo, que é um cisco de tão pequena, aí era problema, mas folha de mamoeiro ? Era muito fácil de catar. Uma tardinha, a pretexto de pedir por empréstimo uma chave inglesa encostou na casa do Seu Né. - Pra que é que o senhor precisa de uma chave inglesa ? - A torneira tá pingando a noite toda, eu não ligo mas a mulher não dorme. Estranhou a pergunta e teve que inventar na hora uma mentira. - É que não tenho chave inglesa. Mas vou lá e arrumo pro senhor com alicate mesmo, Tenente. Vamos lá ? - Deixa isso de mão. Mas aceito um cafezinho. Cidade pequena é fogo, o homem já sabia que ele era tenente, e sabe-se lá o que mais saberia ? O velhinho tinha sido delegado na cidade, a parede da sala de estar era cheia de armas. Diziam que tinha uns tantos crimes. A maioria dizia que tinha um crime só, ter se casado com a Dona Bilu. Essa era altíssima, forte, talvez fosse mais velha que o marido uns dez anos, mas disfarçava a idade sob uma pintura de palhaço. Tudo era postiço na mulher, cabelo dourado, unhas vermelhas, recheio por todo lado. E já era bisavó. - E o café, Bilu ? A bebida veio rápido, quem não veio foi D. Bilu. Mandara pela criada em copos de extrato de tomate, numa bandeja de plástico. - Cadê , Bilu, Aninha ? Servir café nestas pestes ? Traz uma bandeja decente e abre a cristaleira ! - Siô, ela tava de saída pro culto, eu é que botei aqui. - Sei. O homem era baixinho, amarelado e fino, mas tinha uma linguagem polida, os olhos incidentes e um bigodinho branco muito safado. Falava perguntando com muita cumplicidade, como se segredasse, e falava muito, talvez por carência de atenção . - E os passarins, qual o segredo ? Como é que seu quintal vive cheio de passarins ? Até papagaio já vi aparecer por aí. - O segredo é goiaba branca e vemelha, acerola, maracujá, banana , água limpa e silêncio. Passarim gosta de frutas e de silêncio. Porque o velho não citara os mamoeiros, ele mesmo tinha visto um bem-te-vi nos mamões maduros ? - O senhor vai sempre ao Piauí ? - De quando em vez . Agora o Tocantins é meu Estado, sabe ? - E o Piauí ? Perguntou cético, quase interrogava, agora não era o vovô que estava ali, era o delegado. - Aí é minha religião ! O Piauí é minha religião. - Ah sim ! Pois quando for rezar, me traga de lá umas cajuinas. Umas castanhas e mel verdadeiro. Ficaram muito amigos, de nunca mais se falarem, senão quando e obrigatoriamente se viam nos aparelhos públicos. Primeira vinda de gente do Piauí lá veio a encomenda. Tocou a campainha da casa do vizinho, nem era necessário pois Aninha já o avistara. O Doutor está ? - O Siô tá dormindo mas pode entrar ! - Não, vim deixar estas encomendas. Depois falo com ele. Até mais ! Dormindo às dez da manhã ? Devia estar doente. - Tenente, o Senhor já notou que daquele quintal prá cá só vem folha seca e muita folha seca ? Não cai um mamão maduro, aliás, não amadurece um mamão sequer, eles ficam “ de vez “ e aí somem. Quando ela queria, sabia ser terrível, o “Tenente “ o “Senhor” eram ironia. - Você está sendo injusta. Sempre cai mamão maduro aí. - Não, Seu Tonto, cai mamão podre, quando os passarinhos já se desfizeram dele, e só de um mamoeiro, aquele mais alto, formosa, que não tem sabor e é muito alto para alguém trepar nele . No seu aniversário convidou o vizinho para tomar uma cervejinha . Qual o quê ? Disse que vinha e não veio, mas mandou D. Bilu. A mulher avaliou reprovando tudo na casa, mas saiu logo, não bebeu , não comeu mas lançou um olhar de inveja para Carmem, para as fotos de Carmem, para o marido de Carmem chegando aos quarenta. Um sábado estava o Tenente na espreguiçadeira, esperando o raiar, antes ainda do canto dos galos, por volta das três e meia da manhã e viu o velhinho assomar no muro, rapidamente, subir no mamoeiro formosa. Temeu pela vida do Seu Né, mamoeiro não aguenta peso, e se ele cai dali seria uma tragédia. Lá no alto o velho tirou do bolso um vidro de adoçante e lambuzou os mamões abertos pelos pássaros. Puxou um cordão com três apitos e começou a invocar a fauna alada. Deu uma vontade louca de dar um “bom dia , Seu Né ?! “ mas seria vexatório e indigno, conteve o riso e a tentação. Seu Né desceu cuidadosamente. Pelo ranger das cordas, julgou que o homem se embalava na rede, sob a varanda, fora de casa e daí a pouco, pelo ronco, o velho dormia. Pelas quatro e meia da manhã, outro vulto no muro, agora era Aninha que muito arisca retirava cada um dos mamões “de vez”, cada uma das folhas amareladas, colhia e jogava para um cúmplice do lado de lá, era D. Bilu, tinha que ser. Tava explicado, Carmem tinha razão. Aninha desceu da última das três árvores e azulou. Daí a quinze minutos veio de lá uma chuva de folhas secas, aos poucos, uma, seis, uma dúzia, centenas... presente de D. Bilu para D. Carmem.
Marconi Barros
Enviado por Marconi Barros em 18/06/2011
Alterado em 18/06/2011 |