Marconi Barros, um ausente picoense

Marconi Barros, um ausente picoense

Segura na Mão de Deus, pois ela, ela te sustentará ...

.......... PICOS Piauí brasil
Textos

VISÃO

    - Tá aí, Mané !
    Setembro havia chegado carregado de cajus e abelhas e passarins. Oito anos desde a grande febre que levara a visão do Manezim e deixara tudo escuro, a modo de uma madrugada que não vira dia nunca.
    Ana, ou DonAna, sua companheira estava envelhecida pelas tarefas do roçado que assumira sozinha. Todas as tardinhas ela trazia um prato branco com os dez cajuzinhos vermelhos mais maduros, tirados na tardinha do dia anterior e guardados no fundo do pote. Manoel tomava um a um, cheirava e tragava o sumo, num êxtase e segredo de alegria do viver que lhe restara.
    - Cuidado com a camisa que dá nóda! O cumpade chega hoje, faz pouso com nós dois dias antes de siguir viagem que vai pros Picos vê o doutor !
    Oito anos desde a cegueira e era aquilo, Tomezim vinha sempre, pedir abênção, rever o padrinho, pedir história, fazer cavalinho do velho Mané. A comadre Liduina subia sempre a serra para vir rever DonAna. Mas o compadre sempre ocupado, por oito anos se falaram em três pontas de conversas sempre na igreja, pelos grandes dias e pelo batizado do Tomezim.
    - Essa alma qué reza !
    - O cumpade é tímido, Mané ! Num sai das roças, num sai de casa, é aquilo e pronto !
    - Disconsideração eu sei o que é, fomos lá cinco vezes e ele num veio aqui nem uma.
    - Mas vem agora !
    - Vem tarde !
    - Em qualquer tempo, vem bem ! Cê hoje tá zangado à toa !
    O compadre Tomé, o Tomezão, era mais que irmão do Manezim. Ganharam a vida trabalhando pesado, cavando fossas no lajeiro duro, capinando, roçando, fazendo derrubada, na seca, trabalhando de servente, no inverno, trabalhando no roçado alheio, sempre em regime de parceria. Foram também amigos de farras, de brigas e confidências.
Economizavam com esforço buscando melhorias para os filhos. Os do Tomé vieram logo, Tomezinho, André e Salomé, do Mané, que nada, ou ele, ou a mulher, ou os dois eram maninhos. A vida com compadre melhorou muito nos últimos oito anos, um governo bom trouxe energia e água. Deus mandou chuva e saúde e o mais o Tomé buscou no muque.
    A cegueira estacionou Manezinho com um roçado magro, umas vacas, uma casinha na cidade, umas criações e uma dignidade só menor que o orgulho. A doença tornou o homem de língua mais frouxa, falador, palestrante, dado a amizades novas : amoleceu o juízo, pensava o compadre consigo.
    - Boa noite, cumpadre ! O amigo desceu do burro, abraçou Manezinho que tentou segurar uma lágrima debalde.
Noticiados : familiares e roçado ! Ficaram mudos, cada qual numa rede, na varanda enquanto DonAna findava as orações, lá para dentro !
    - Que céu, cumpade ! Deus é maior em tudo mermo !
    - É maior ! Ecoou Tomé enquanto enrolava um cigarro !
    - O homem tenta ser tão- tão, mas num consegue ! Vai não vai passa aí uma estrelinha no bem longe, invenção do homi, levando gente ! Avião ! Primeiro vemo a estrelinha, adispois ela some e fica o baruio, como de uma cachoeira abafada ! No longe !
    - O cumpade consegue ouvir o baruio do troço ?
    - Apois e ocê não consegue ?
    - Tomezinho me amostra, sempre ! Num consigo ouvir a zoada do trem nem ver a luizinha !
    - Taí, pois minhas oiças ficaram mais fortes. Consigo até diferençar o beija-flor verdim do vermeio só pelo vôo ! Um vem do poente, outro do nascente.
    O silêncio se estabeleceu vagarosamente. Os mugidos, o ronco o sussurro dos animais foram se calando. A música das redes nos tornos de madeira também foi se amiudando. Um acanhamento se deu... Com a voz abafada Tomé :
    - Cumpade, Mané ! Ocê sabe que é meu irmão ! De fé ! Do peito ! Nesses anos todos eu num vim ver você ! Eu nunca te ajudei ! Fiquei por defora ! O motivo compadre, não é ocê não ...
    A voz saía num sussuro, Tomé tinha uma arma nas mãos ! Manejava com cerimônia e contava as balas ! Pesadas, sempre lustrosas ! A arma brilhava !
    ... Sempre formos cumpãeros de sirviços ! Eu trouxe ocê pr’esse mundo, dei seu primeiro sirviço ! A morte do Zé Leitão ! Aquilo era um degenerado !   Batia na mulher, dava nos fios e não pagava a gente viva ! Matar ele era um favor aos todos mais !
    O homem girava o tambor do revólver, lentamente... e vinha uma tentação de apontar a desgramada pro cumpadre, cego: era um favor, pensava o compadre já com o cão retraído em ponto de ao ponto...
    ... Quando veio procê aquela febre do nada, soube que era um castigo que Deus tava mandano .Quando tu cegou, tive certeza. Dotô ninhum atinava com a causa ! Teus óios tavam inteiros . Por quê não funcionavam ?
    ... Danei para ter medo. Fiquei espavorido ! Tuas morte sempre foram pra gente ruins no tudo ! Eu não, eu matei morte injusta, gente inocente, mulher desleal, filho incomendado pelo pai !
    E quando tu cegou, lembrei das histórias que minha mãe me contava do meu pai de verdade, que era ruim feito uma cobra e bonito feito um alazão ! Que, duma queda do cavalo, tudo se desfez e ele foi largado pela família dele de verdade e virou esmolé !
    Sempre tive terror à cegueira, compade ! Ocê sabe que sempre tive medo de escuro.
    Se eu não vinha ver ocê, era com medo de ficar cego !
    Minha vista tá encurtando ! Não enxergo mais de longe não, no mais que vejo são dez metros de longe !
    É a noite que tá chegando ! Vou finar com isto ! Vim me despedir do compadre, vou assuntar o médico também ! Conforme seja, uma destas seis balas é pra mim, que inda tenho uns três ajustes pra fazer c'outros três !
    O Manezinho dormia um sono dos mais profundos, na décima camada da noite, e ouvia o canto bonito de sua mãe, embalando-o na rede da outrora . Não assuntou uma palavra do que disse o compadre .
    Quase pela manhã Tomezão dormiu e agora e o Mané é que acordava, assoviava alto, uma música velha de guerra que os dois usavam nas andanças campeando os trabalhos:
    - Olê, mulé rendeira... Olê, mulé rendá... Repetida sempre...
      Veio a tarde e a tardinha. E o compade no assubio besta.
    - Olê, mulé rendeira... Olê, mulé rendá...
    - Apois das cor o cumpade se alembra? Nos sonhos o compadre inda é valentão e enxerga tudo, né mermo ? Quebra mesa, quebra istaca, avança na eira.
    - O que mais dueu neu, compade, foi isso:minha cegueira levou até as lembranças, nem sonhos eu tenho mais. O nome das cor pra mim num serve. Sei que as plantas é verde mas não sei o que é verde. Minha cegueira foi completa. Tudo virou massa cinza escura, duma cor que não sei difinir.
    Tomezão ficou horrorizado ! Nem as lembranças ? Nem os sonhos !
É estar enterrado vivo.
    A pretexto de beber uma água, o compadre Tomezão entrou na cozinha para chorar, mas deu com a comadre que arrumava o prato com os cajus para Mané.
- Deixa aí, DonAna ! Eu levo !
A comade saiu e o compade chupou um daqueles cajus, pois estavam mesmo cheirosos ! Quando o compadre foi de junto do pote pegar outro caju vermelho para repor, só tinha três amarelinhos. O compadre arrumou assim mesmo trocado e levou para a sala.
    - Aqui, compadre ! Já me despedi da comade e agora tenho que ir, quero chegar im Picos inda demadrugadinha !
    O abraçar do amigo veio muito do muito forte, Tomezão não pode deixar de reparar no prato, restara o caju amarelo. Deu uma dor na consciência mas começou a se acender uma pequena faísca no seu juízo.
    Quatro léguas adiante a faísca já era uma fogueira... o avião no longe, o caju amarelo,o beija-flor, a excitação do compade diante do povo... Tomé resolveu voltar mas nem bem virou a montaria, ouviu ao longe, assobiada e vacilante, a velha música de guerra...
    - Olê, mulé rendêra ... De arma em punho Tomezão reparou que os cartuchos estavam esvaziados. A noite se fazia mais escura...













Marconi Barros
Enviado por Marconi Barros em 11/09/2011
Alterado em 29/09/2011

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