Marconi Barros, um ausente picoense

Marconi Barros, um ausente picoense

Segura na Mão de Deus, pois ela, ela te sustentará ...

.......... PICOS Piauí brasil
Textos

MODELO DE QUÊ ?
Julho lá se foi. Estar em Picos é uma delícia, sempre. No regresso último não resisti a uma subida na escadaria do Mestre Abrão. O fôlego encurtou, rendi-me aos anos. Tive de parar no segundo lance da escada. Após Quinze minutos estava no cimo da “Mariana”. Avistando parte do nosso vale, o Vale do Guaribas.

Naquele mês o valado guarda cores terrais, áureas multiplicadas no sol da Ave Maria.Após muito atentar vislumbro alguém esguio subindo pelo o primeiro lance da escadaria, lentamente. Contudo meus os olhos avistaram um papagaio pros lados do poente. Eu empinei uns tantos, assim. A nota de café torrado vem agarrado ao vento. Numa daquelas tantas casinhas alguém saúda a noite com a rubiácea.

Volto-me para a escada e se me revela o vulto esguio.E são na verdade dois, uma velhinha magra que equilibra uma caixa na cabeça e traz adiante de si, de modo a protegê-lo, um garoto com uns seis anos. Ela está suada, resfolegante, a cabeça erguida mas os olhos voltados aos pés, sobe a escada em ziguezague.

- Boa tarde, vovó !
- Boa tarde, meu filho !

Moraria ali perto. Criaria o neto. Uma dor tão nobre e tão banal.
Após um tempo a senhora tornou com o café que o vento sussurrara. Deu-me a bebê-lo. Afirmou que conhecera minha avó, meu pai, e me vira em menino. Veio levemente, e se foi de modo suave. Deixou-me ali com o café. Embaraçado, em viagens. Eu trabalhara nas Representações Bezerra, Officce Boy. Quantas vezes eu subira ali o morro, por aquela mesma escada, à casa de seu Abrão, levar ou trazer documentos ou dinheiro ?

Mas uma coisa é o se ter quatorze anos. Outra, é o ter-se setenta.
Aquele momento poético trouxe-me outro. De reflexão.

Picos tem a alcunha de Cidade Modelo. Sempre me perguntei o porquê ? Então no compêndio geográfico do Piauí dei com o motivo. Cidade modelo de distribuição de terras. Não há latifúndios. Por algum tempo me orgulhei disso. Uma cidade humana. De pequenos proprietários. Gente simples. Gente honesta.

O orgulho não subsistiu. Se não há latifúndios rurais é porque resultariam inúteis. Para quê ? Eles normalmente estão associados à exploração de monoculturas.

Picos está tomada de latifúndios urbanos. Mais danosos e desumanos.

Por que a Cidade Modelo expulsou numerosos filhos seus para a Cohab, as Pedrinhas, o Pantanal, o Morro da Macambira, do Urubu, da AABB, da Cidade de Deus ? Você conhece as Aroeiras do Matadouro ? Pois também para lá estão convergindo as pessoas e morando num morro.

Nasci e fui criado no Centro. A maior parte da minha infância morei na Rua do Cantinho, hoje Praça Josino Ferreira. Todos os acessos são próximos. Você interage com a cidade. Ela é mais sua.

Depois morei na Cohab. Sua vida passa a depender dos transportes. Dos outros. Tempo doloroso aquele que a gente passa numa parada , esperando o ônibus que já veio, que não virá ou que passará lotado. Isso é comum nos grandes centros, mas Picos já é um grande centro que o mereça ? Por que essa expulsão das pessoas ?

Por que nossa cidade esparrama seus gentílicos pelos locais mais longínquos e inesperados? O Vale do Guaribas não foi ocupado. Sobe o Morro da Mariana e olha a margem esquerda do Guaribas. Segue até o Junco e vê quantas roças e terrenos por serem loteados. Segue na estrada que dá no Matadouro e vê quantas roças. Quantos terrenos planos, aptos à construção de moradias !

A Cohab foi construída em 1979. Havia justificativas para que se ocupassem terrenos tão distantes ? Se foram terrenos comprados, alguém saiu ganhando nessa. Se foram a contra-partida de algum órgão público, isso mostra que, ante seu administrador, o povo valia bem pouco.

Imagina a cabeça de quem escolheu os terrenos do Pantanal para construir um conjunto habitacional! Quanto custou ? Foi doação ou alguém levou algum ?

Por que nossa cidade não cresceu na margem esquerda do rio ? Por que só agora ela cresce para além da Ingazeira (ou da Severo Eulálio)?

É triste, mas a margem esquerda do Guaribas está ocupada por roças. Gado vacum pastando na dignidade dos que moram trepados nos morros, apertados nos ônibus, segregados na distância.

A passarela começa e termina em dois charcos baldios tomados por moitas de canudos.

Parte das margens das BR’s também estão ladeadas por propriedades rurais.

Não alcanço a pura maldade nos fatos ora expostos. Creio sim que houve uma insensibilidade de quem quer preservar o  que  é  seu  (E por direito. Reconheçamos !).

Não somos pela expropriação. Porém esses roçados ordinários de cinzas e barro produziriam mais riquezas e trariam muito mais alegria aos filhos da “Mariana” se fossem parcelados para ocupações estritamente habitacionais e vendidos a preços populares.

Fico abismado quando um conterrâneo me conta vaidoso o preço exorbitante alcançado por um imóvel no Centro Comercial. Transformaram o setor central num pequeno corredor de lojas. Essa hiper valorização nos leva a concluir que a cidade modelo está se tornando um grande mercado desumanizado, um Shopping parcelado onde pessoas não passam de um detalhe.

A Constituição Federal no Título VII que trata da Ordem Econômica e Financeira, no Capítulo II atinente à Política Urbana, preceitua do artigo 182 ao artigo 183 o planejamento racional de ocupação do espaço urbano que seria definido na esfera dos municípios pelo Plano Diretor (obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes ). Picos tem esse Plano Diretor ? Você o conhece ? Se existe, por que permitiu a ocupação dos morros. Por que não propiciou a urbanização de extensas áreas urbanas relegadas à lama ou à poeira consoante a estação ?

Vejamos o que está na Constituição:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbana, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes.

§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

... § 4º É facultado ao poder público municipal ... exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente de:

I – parcelamento ou edificação compulsórios;

II- Imposto sobre apropriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

III-Desapropriação...

Esse artigo 182 é maravilhoso e definitivo. No entanto é meramente instrumental. Para que possa atuar carece de políticos determinados a mudarem os hábitos capitalistas das elites dominantes, mormente as comerciais, e propiciarem a construção dum espaço mais adequado e mais justo. Necessita-se ainda de abnegados( como foi Dona Romana) que empreendam a partilha de suas terras visando não apenas ao lucro mas à edificação de uma urbe equilibrada e humana.

Dado alarmante é que o Cemitério São Pedro Alcântara teve sua capacidade praticamente esgotada. Quem não tiver jazigo familiar com espaço ali, terá o corpo transportado para além do Parque de Exposição. Um campo santo distante assim é absurdo, como vamos cultuar nossos mortos ?

Precisamos resgatar dos morros, dos ônibus e das distâncias os velhinhos e as crianças de hoje e de amanhã.Preservemos a memória dos que se foram pois iremos também um dia. Então Picos será verdadeiramente modelo de ocupação urbana.
Marconi Barros
Enviado por Marconi Barros em 29/09/2011
Alterado em 29/09/2011

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