.......... PICOS Piauí brasil |
![]()
MERCADO PÚBLICO MUNICIPAL
O Mercado é um Catálogo, uma Enciclopédia e os sentidos têm ali o campo do vasto.
Matizes plurais estampadas nas chitas, na pele das frutas, no sorriso marfim do chapa, no indefinido das mariolas, verde chumbo mergulhado nas rapaduras, as plumagens dos galos e galinhas em bronze, barro, prata, cardeais, carmesins e carijós, em giz monótono. Aquarela ente, diluída na luz vazante da manhã que só adormece pela Ave Maria. Olores: fumo de rolo, alho, abacaxi, peixe, manteiga da terra, requeijão, pimenta-do-reino. Se passa, o vendedor de ervas, paus e remédios tempera o ar, atando aromas às lembranças. A audição distrai-se sob compassos embolados num pandeiro que convida Lampião, Maria Bonita e bando pro arraial. Um sanfoneiro acolá ressuscita Gonzaga, Jackson e João do Vale. O lamento nasal do ceguinho embala histórias de baronesas e escravos do Império que do seu mundo ainda não foi varrido. A voz simples e clara do povo negociando : -Cinco mi réis, a dúzia, é cinco mi réis ! Da barraca-restaurante de Remédios viajo pela micro-região na oitiva dos matutos e até dos graúdos que se chegam, com eu, em mergulhos a se buscarem. Rugas nos tijolos de açúcar e gengibre. Fadiga ao medir o apego da peixeira ao seu mister, o polegar analisa o fio, desconfiadíssimo de possíveis desgostos. O tato industrial do copo americano que tenho em mãos. As três dimensões que me trazem à Enciclopédia Humana são vistas, sabores e sons. Nas manhãs de sábado em visita a Picos a família já sabe : - Meu café é no Mercado. - Já sei Marconi, bolo frito, cafezinho duplo. D. Remédios foi minha professora de Gramática, e ‘inda é, diante dela pouco falo. Quedo-me ali a escutar o café e os que vêm de longe : safra, política, montadas, um casório, pragas, um batismo, bezerro mal nascido, boi bem sumido. Angico Torto, Angico Branco, Milhans, Torrões, Saquinho, A Prensa ( sempre com artigo), Saco das Cabaças, Saco da Embira, Morro do Quebra Pescoço, Djogo, Jurema, Chupeiro, Capitão de Campos ... perco-me em tais jangadas oníricas. A poesia em mim bebe desse cálice, as memórias de quem fui alimentam-se desse pão. Traço mentalmente o Atlas do que vivi, elegendo Picos por Norte, não querendo tê-la corrompida pela mesquinhez : correr, correr, correr. Minha existência enreda-se na dessa gente. Creio buscar no Mercado uma certeza de que todos esses anos não foram sonho. E nos quintais picoenses, n’outrora d’eu menino, moraram beija-flores, soins, canários, cabeças-vermelhas, rapa-cuias. Que os bingões aos domingos houve. Que a Rua do Correio afogava-se com qualquer chuva. Que as rinhas de galo na Josino Ferreira foram reais. Que em junho soltávamos papagaios sobre a Mariana. As nove-horas da pracinha abriam-se às nove horas em profusão de tintas. O dobre da Igrejinha dominava toda a cidade. Palhaços em pernas de pau distribuíam balas às crianças anunciando-se ladrões de mulher, chamando-nos ao espetáculo... Que Maria Gorda, minha avó, professora primária, após ter sido lavadeira e passadeira, revelou-me as letras tendo a Virgem nos lábios e o rosário nas mãos. Mercado Público, tempo passou, ficaste, entre gêneros, arreios, cangalhas, lamparinas, cabresto de cavalos, celas, pomares consumados, farinha de água... Ecos d’outros Picos, tardes ensolaradas e lentas... como grande nau que teimasse em zarpar. As estampas do teu existir ainda comovem o picoense que as traz gravadas em si.
Marconi Barros
Enviado por Marconi Barros em 20/04/2008
|