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OMNIA MEA MECUM PORTO
A tardinha busca a noite arrefecendo a chama que no meu peito arde como um São João da Barra, uma pinga, um rabo-de-galo tomado noutro tempo, por um outro que viveu em mim e foi-se embora de madrugadinha deixando a rede desarmada e bem dobrada com a coberta por sobre a cadeira tosca de madeira e couro velho enegrecido rescindindo a montadas e vaqueiros. Não olho mas adivinho a tardinha que faz suas aquarelas alaranjadas nas telas celestes que a Mariana tem sobre si desfraldadas. Esta noite estarei voltando pra casa de papai.
Os meus filhos estão criados, um apenas foi-se mais cedo, têm seu norte e passaporte e só agora realizo que o dia de cada um deles, ao menos a tarde, está nas mãos deles e sempre esteve. Em roças de meu avô todas as estacas cataloguei, de que madeira, de que provável gleba teriam vindo; chegando mesmo a contar os grãos de um litro de arroz em casca num ano de boa safra; batizei secretamente cada uma das tantas e muitas reses suas, sabia-lhes dia, ano e mês de nascimento, o tempo ficou refém do meu calendário bovino, mapeado por seus nomes , creio que o gado também me conhecia. Fiquei arquivando cúmulos num dia de semi-estio, nuvens anchas, formas plurais que se moldavam ao sabor de minhas saudades, do canto daquele pássaro, do vôo daquele urubu mais robusto que pensa que o céu é terreiro de brinquedos, muito aprendi nesta labuta dos sem-que-fazer, penso que isso me fez mais suficiente, mais benéfico e com pretensões paternais. Longe de Picos nunca fui, o mais Teresina, capital do estado e estábulo do Meu Reino, aí morei três anos em estudos, tanto maturando, tanto morrendo. Trasanteontem realizei meu velho sonho, como foi bom ! Tirei meu nome da relação de poupadores no banco, comprei boa e branca montaria ( - Papai tá louco! Onde vai por esse animal ? ). Cazé entregou-me o último e tardão paletó de seu fabrico (três doses de alcatrão, uma longa conversa de coronel moribundo sobre idos tempos com suas festas mundanas e religiosas dissuadiram este velho e o cego alfaiate de suas aposentadorias momentaneamente ), foi sem dúvida sua e minha melhor peça. Todo paramentado, de branco o velho coronel saiu do meu mundo de ilusões e adentrou no quadro da feira, como se adentrasse em terras de Espanha e Portugal, d’outros tempos e gentes.... Fez figura, procurou sua Maria, mais linda rosa do roseiral... nas bancas de comida, nas portas da Matriz – pediu a bênção ao padre David – na feira dos pássaros ,e nada...Galope rasante rédea solta, roseta apertada, para o Angico Torto ( - Seu Antonio está louco !) ( - Óia, o compadre como tá bonito, parece bem um São Jorge ...). Toco pro Angico Torto levantando poeira, pras terras do Seu Coronel Sebastião Crisóstomo, roubo-lhe Maria e, estrada... Não, não havia mais Maria, estava longe, nas Três ... noutra querência adiante de quatro rios a serem cruzados, muitas léguas tantas...pro Norte, ela tá no Povoado Pretérito e bem quando ia... cascavel realidade mordeu Algodão, coral verdadeira mordeu-me também e vim parar aqui, nesta cafua do Seu Zé das Barbas, caçador de mocós e senhor de vasta prole... Logo mais, à noite, irei para casa de papai ( - Já é noite !) Pra casa dos meus pais... Quase não perdi por de sol, nem cabeça do dia, mesmo na capital. Não deixei de ir a leilão, reisado, noventa, forró, batizado, casório. Esqueci-me seguidamente a colecionar leituras nas páginas das natureza, decorando o pio das aves, o vôo dos pássaros, o passo do gado triste com seu terno regurgitar, cacei muitos passarinhos com os olhos, ias pescar só para ficar vendo o Guaribas se entregar às inclinações das planícies da minha cidade, quando no quase estio, deitava-me no seu leito e escutava suas águas, rugido da distância e pra ela indo, levando um pedacinho de minha consciência para poder com meus olhos de encantado ver o quanto é belo tudo o Éden... Aos meus tratos nunca faltei, só não cheguei pontualmente a qualquer deles, as horas nunca me deram chicote, quando muito, me laçavam com tranças de cabelos de donzelas quiméricas, fui seu cativo, não seu escravo, fui antes um seu amigo, o temp não embranqueceu meus cabelos à toa, quase não dormi, vivi, muito andei, vi muitos quadros de estrelas, luas vermelhas, olhos bonitos e histórias contadas pelos encarquilhados de minha aldeia, o meu anuário estampei-o de estradas e trilhas, e eu não joguei fora uma única estampa, uma única imagem, um som, uma pessoa, nada me foi destacado. Esse acervo é o que porei na mala (feita com madeira de caixotes e papelão de sacos de cimento) que comigo levarei, a maleta da minha consciência, nessa viagem que farei para a casa velha de papai, do meu filho mais novo, vovó, meu avô, tios-avós, amigos idos, todos de quem gostei, vi, conheci e que já foram... Lá fora a noite chegou, trouxe com ela o frio, e um grande e irresistível sono... O caminhão vem no beco... na porta... um dia, talvez, ainda veja você, creia-me ! não te esquecerei, se lembrar-me dado for, na minha mala também te levarei. OMINIA MEA MECUM PORTO – Tudo o que tenho levo comigo. Isto para dizer que a maior riqueza de cada pessoa é a sua própria pessoa, a sua inteligência, o seu coração.
Marconi Barros
Enviado por Marconi Barros em 21/04/2008
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