Marconi Barros, um ausente picoense

Marconi Barros, um ausente picoense

Segura na Mão de Deus, pois ela, ela te sustentará ...

.......... PICOS Piauí brasil
Textos

ARU, UM URUBU SEM ASAS

     Pobre, a mania suburbana paulista de abreviar nomes. Lúcia é Lú; Auxiliadora, Dora; Fernando, Fê ou Nando. Referência carinhosa, finda por diminuir, ocultar, mutilar o ser. Não gostava. No Catandão anônimas eram as pessoas , animais de rapina. Ficou sendo Aru, escolhera o nome:
    - Tem apelido ?
    - Juvenilson !
    - Não serve !
    - São José ?
    - Não !
    - Bel ?
    - Não !
    - Arubu, então.
    - Arubu ?! Não. Aru, vai ser Aru ! Foi seu batizado
    - Mil setecentos e três quilos, novo recorde.Grande, Aru !
    - Diga ...
    Carcará, apontador, tomava nota dos descarregos de recicláveis na Recicla Brasil, ONG pra catadores, galpão abandonado, fundos da Sé, fora revenda dos turcos quando a cidade era ainda promessa, feira de pássaros, venda de couros. Grande incêndio e no Centro dormira cinza . Invadiram-na, caiaram-na e virou Catandão.Rato, Carcará, Cupim, Acauã forças humanas excluídas do convívio dos seus. Dos marcados pelo Código Penal, sem emprego, sem teto, sem rumo, dos dobrados mas não caídos pois ainda não se drogavam... estando porém nas abas do abismo. Deles era o Catandão.
    ... o que cê vai fazer com tanto dinheiro ?
    - Tem dinheiro não, Carcará .
    Apenas Carcará conservara o apelido completo, respeito ao cargo. E o nome, só Creuza, também Creuza era a santa, mãe, luz de todos eles, acolhia, ninava e trazia da correnteza aqueles que se deixassem levar...       Quatro filhos, mas não parira.
     - Ocê mora embaixo desse chapéu, não come, não veste, quase não existe, só ajuntando, ajuntando, ajuntando.
     - Boa noite, é com Deus, Seu Carcará !
    Alguma força muito grande ele adivinhava em Aru, inesperada estrela ou incalculável abismo... Boião manso:
    Chegara pra uma chuva - É só trêis mêis... depois me arrumo... Fazia cinco anos ali. No começo achou ridículo catar papel, papelão, lata, arame, ferro... Primeiro mês comprara o carrinho, a bem dizer, carrocinha com pneus de bicicleta, não ‘güentavam peso.Segundo mês, um carroção, Aru virou boi... catador graduado, boi, boi mesmo, tanto peso, tanto peso ! Boi com pés de roda... desumano... fundido à carroça... ali, sabia-se útil... boi manso... Dinheiro quase nunca :
     - Vai guardando Seu Carcará... Desconhecia a cidade, as ruas eram rios de cursos ciganos...
    – Ara, mas essa rua num terminava aqui não. À noite ressonava alto, muito quieto, muito abotoado no cotidiano...
    - Nem pinga, Aru ?
    Ao natural nem alegre nem triste... Só uma vez viram-lhe rastros da alma : acharam corpinho de Vitô... pretinho, 10 anos, gago, sem vício... sem a cabeça. – Viu demais ! Ouviu demais !   Aquilo não devia de haver ! Aru chorou, com sentimento, ‘garrou o pretinho sem vida... sem cabeça... Creuza, um filho de menos.
    Todos acharam então que Aru tinha família... Uns negrinhos, vai saber ? Não contava nunca sua história,    medo de a apagarem...  Sabê-la ?
    Picos, Piauí, mãe lavadeira... nem era sua... Pretinho, traços finos, olhos graúdos, distinguido pela força, vento dos pés, dentes revelados, ria sempre e de estranha predileção : todos catavam passarinhos, bem-te-vi, rolinha, sabiá, canarinho, cabeça-vermelha ... ele não, só tinha olhos para o céu... Juvenilson de Menana assistia aos urubus...
    - Eles avoam mais alto. Muito alto, não se cansam.
    Ficou sendo Arubu. Gostava. Imaginava-se voando e sobre tais aves, sempre aquele sonho... Era um deles... e voava, revoava muito no líquido escuro da noite... junto às estrelas planava, crocitando... Ninguém soubesse, mistério dele....só ele sabia.... aquela cor era tinta da noite... os urubus tinham a substância do ar... e à noite planavam.... ele , em sonhos... planava também nas alturas dos oceanos.... conhecia as feras marinhas, noturnas, jamais reveladas, sereias que as batizasse... luzes d’outros aviões d’outros povos, ... as grandes cidades... Podiam voar por se alimentarem de pedaços da morte.... na rapinagem alavam-se... grandes asas... Os outros, passarinhos e aves, eram da terra, buscavam sementes, insetos, viviam dos ciscos não guardando pacto mítico... As corujas da noite não eram brancas ? A pois não piavam ? Não moravam na torre da igreja ? Rasgavam mortalha sobre casas, sem qualquer encantamento. Os beija-flores com elas se confundiam. Os arubus ? Um-um ! Não se lhe adivinhasse o que faziam à noite... enquanto dormia o vento .
    Baldio no ABC, na carpintaria crescera. Aprendera a botar o nome nas letras daí não passando, decorara também seis dizeres confusos num jogral do catecismo.Fora Belzebu, daí o apelido de Bel, não pegou... O moreno padre Franco do Nascimento vendo-o representar comoveu-se, olhos em bagas, dele afirmou :
    - É um São José ! Até com mais razão, pois não é carpinteirinho ? Ficou São José por um tempo.
    A São Paulo, mundão de concreto, mundo de tábuas e zinco, mundinho de papelão, cidade excedente não precisava de um carpinteiro analfabeto, fazer mourão, cochos, tamboretes, mesas toscas ? Não, não cabia, principiou a se desmontar... pedreiro, ajudante , chapa... paraíba sem nome, voltar já não podia... Menana alimentava varais celestes. Não avistava mais o céu, `a noite não sonhava , foram-se os urubus, sumiram-se. Uma mulher na sua vida, um filho. Uma manhã, sozinho:
    - Quê é da mulher ? Lina o deixara, sem negrinho. Desmontou-se, nas ruas, alucinado, não acertou rumo de casa, andejo, descobriu-se no Catandão:
    - Só três mês, tomo rumo.
Repórter de jornal chegou empoeirado.
    - Quanto vocês pagam, Carcará ?
    - Um real por cem quilos de produtos !
    - Só?
    - É provisório. Ninguém vive disso não.
    - Quanto tempo os catadores ficam ?
    - Um mês, dois, três no máximo, dispois arranjam coisa melhor, ou disistem, é muito pesado.
    - Desistem ?
    - Albergues, debaixo da ponte, pedem, roubam... disistem.
    - Triste !
    - Só dois firmaram na peleja .
    - Quem ?
    - Aru e Creuza.
    - Posso entrevistá-los ?
    - Ela fala pouco, anda triste. O menino sem cabeça ? Era o dela.
    - E o outro.
    - Aru ? É muito calado, cismador, forte como touro, o que mais faz produção. Se o Senhor quiser tentar ?
    - Sim .
    - Último descarrego é às 10 da noite.
    Chegara, anunciado pelo ranger do carroção, ferros, latas. – Quer falar com Tu, é do jornal, só perguntar umas coisas.
    - Boa noite, Seu Carcará !
    - Espera, homem !
    Aquela autoridade, figura clara de brasa nos olhos, perfumado à sua frente, já agora dizer não lhe era impossível, não conseguiria se desvencilhar. Pessoas alinhadas, arrumadas, cumpridoras do espelho, os das estampas de revistas assombravam-no e intimidavam-no. Um fasto assim devia ter arrastado Lina, tudo é deles, a gente só existe porque eles deixam.
    - Boa noite, Seu Aru !
    - Noite !
    - Vim fazer uma reportagem sobre seu ofício, vocês são os verdadeiros ecologistas... Encareceu-o ...
   Ouvira aqueles chavões, repetidamente, Carcará sempre o martelava com aquilo, uma vez por mês vinha uma mulata corpulenta, o rosto lixa grossa, reunia-os para uma léria longa e ao final ? Camisinhas, siringas: - Siringas ? Era viciado ? Ele lá era um viciado ? Acanho, não conseguiria fugir daquele homem.
    ... Tipo de lixo que o senhor recolhe ?
    - Papel, papelão, lata, ferro...
    - Quanto o senhor recebe ?
    - Num sei.
    - Se não quiser responder não tem problema.
    Não acreditara no que dissera. De fato não sabia.
    ... O Senhor tem família ?
    - Não.
    - Seu nome ?
    - Aru.
    - Aru de que ?
    - Aru de Arubu ...
    Gargalhara. Para ele a vida era um filme de gângsters americanos. Esperava uma nota trágica d’algum daqueles miseráveis para comover os bobos e sair da coluna policial, e ali estava aquele paraíba, Aru de Arubu... Não tinha nenhum glamour.
    - Já esteve preso ?
    - Não !
    - A noite é muito violenta ?
    - Não vejo nada, só cato lixo.
    - Quantos quilos de lixo o senhor traz por dia ?
    - Mil e quinhentos.
    - Por dia ?
    - Sim.
    - A morte do garoto, Vitô ? O senhor pegou o corpo dele.
    O Negro amiudou-se, pareceu cair num grande abismo:
    - Muito sangue ? - Ele batia carteira ?... Olhos marejados... o sangue da criança jamais saíra dos braços, do seu peito, banhos que tomou não lhe valeram... estava manchado no sangue... e no pretinho viu o seu. – Devia ser um drogado ? Extorquiu alguém num estacionamento... Acharam a cabeça ?
    - O senhor, tá ouvindo Moço. Não volte ! Não volte... O negro crescera, era outro, enorme... O dobro do tamanho... As unhas cresciam, o fôlego curto, uma sede que ele queria saciar no corpo daquele homem.Sentia os braços gigantes, poderia muito bem abraçar a noite e sob os falsos tons do perfume distinguia o hálito de cocaína, éter, álcool, alho febril, vurmo, esperma, escarro, suor, vísceras preguiçosas cheias de gases. Aru se metamorfoseara, mergulhava em si mesmo tudo o que vira e não soubera externar nas suas coletas de lixo: unhas extraídas, dedos cortados, orelhas leprosianas, fetos putrefatos, assolação, tudo vindo dos condomínios luxuosos sepultando-se em Aru, agora desvelavam-se.
    - Tá maluco, Aru ? O que é que cê disse pro moço ? Saiu agorinha, cor de papel. Mas o Boi Manso não estava mais ali, regurgitava sonhos antigos, seres fantásticos, grandes feras, grandes abismos, os siderais... vinham-lhe em frenesi... delirante... transido... febril... a boca espumava... o corpo sacudia-se violentamente, desacordo.
    - SAMU, rápido, tá morrendo! Ambulância veio, ficou o carroção pesado e um vazio. Pronto socorro, rápido! Um dia, dois... Sem atendimento, no corredor... As crises serenavam... veio-lhe um torpor, uma quietude que era a própria morte. Esfriou.
    - O corpo, ninguém reclamou ?
    - Esse aí vai ter aula de anatomia.
    Já o embalavam, ergueu-se lentamente, com voz cavernosa, firme determinou :
    - Água, estou com sede .
    - Tragam água ! Viajem longa ? ... O enfermeiro mais antigo.
   - É assim que se enterram muitas pessoas vivas !... auxiliar.
   - Bobagem, este homem voltou.
   Dias perambulou sendo noite, manhã e tardinha. Após três meses assurgiu no Catandão. Carcará de roupa nova, uma motocicleta.
    - Aru ?! Falaram que tinha morrido.Abraçou o amigo com força para ter certeza de que ele estava mesmo vivo, molhou-lhe o ombro. Gostava muito dele. De verdade.
    - Você tá no jornal, na cidade toda. Aru, um urubu sem asas. Olha aqui, ele escreveu que a vida da gente é arubu que alimpa a cidade, mas não pode voar, não tem asas. Que se o mundo fosse um Catandão era muito limpo. Aru, um urubu sem asas, ele gostou de você , Aru.
    - Sem asas ?
    O gigante assomou no viaduto, a cidade dali era clara, o chão inexistia, não precisaria de asas, vertigem, náusea. Olhou pro alto uma vez, a torre de televisão. Subiu. Lá do alto, não tinha poluição. Avistou as estrelas, avistou urubus voando, sobre a noite paulistana. Aru sentiu que seus braços haviam crescido muito, achou-se alado. Doideira. Sem asas ?    Sorriu. Sem asas ?
    Chuva. - Sem asas ? Desceu. Três quarteirões. Três filhinhos de papai pararam num carro :
    - Ô Paraíba, tem mato aí ?
    - Sem asas ? Perto dos boyzinhos. Sentiu todo o cheiro, toda a repugnância. E exclamou : - Bel, meu nome é Bel ! Morte.
    Com Febo chegou ao Catandão :
    - Carcará, meu dinheiro ! Não conferiu. Não era íntimo dos números... Morro da Mariana, juntou-se com Creuza e seus três crioulinhos. Cantava, aprendeu a sambar, carpintaria, aconselhava justo e justiceiro de encomenda. Bel, um arubu de asas. Dizia... sorria... um arubu que avoa.... muito... muito alto..

Marconi Barros
Enviado por Marconi Barros em 22/04/2008
Alterado em 29/09/2011

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