Marconi Barros, um ausente picoense

Marconi Barros, um ausente picoense

Segura na Mão de Deus, pois ela, ela te sustentará ...

.......... PICOS Piauí brasil
Textos

DORMITÓRIO SÃO DOMINGOS
Desde que nos divorciamos tento recompor minha vida. Não tem sido fácil. Ela levou-me os filhos Anastácia, André e Carlinhos. Restou-me o trabalho.
Tento convencer-me de minha importância. Na caminhonete nova viajo uma vez por mês a Picos,  dar assistência às outras empresas da rede.O carro tem seis lugares, demasiado  para um homem solitário que nem sequer dá caronas.  
Em trânsito busco sossego e privacidade. Evito as pensões. Julgando-me grande, fico sempre no melhor hotel de São Domingos do Azeitão. Não é lá grande coisa embora me cobrem o preço de um cinco estrelas. Não tomo refeições. Relaxo na ducha quente e durmo ouvindo a  televisão.
- Alguém importante viajaria 900 km guiando o próprio veículo ? Pelo menos revejo minha família em Picos.
Naquele sábado chuvoso sai já atrasado. Parei em São Domingos e quando busquei o Hotel, não havia vagas. E agora ? Seguir viagem ? Dormir no carro ?
- Senhor, há o Dormitório São Domingos aqui ao lado ! Sugeriu-me o atendente do qual não sei o nome, e acho que não era nenhum dos vistos anteriormente.
- Não, obrigado ! Eu não durmo em pensão !
- É dormitório, Senhor !
Em três anos de idas e voltas não dei pela existência de tal dormitório, seu nome estava embotado na parede. Semelhava uma casa mas estava ali colado ao edifício do Hotel.  Resolvi seguir viagem. Mas três quilômetros adiante o tempo se fechou . Escuridão e água, muita água.
Meia-volta !  Bati na porta. Uma vez mais . Ainda outra vez.
- Já vai ! Gritou uma Senhora com voz pigarreada !
- Boa noite ! A Senhora teria um quarto pra eu passar a noite ?
- Sim ! Sem café da manhã ! É só dormitório ! Asseverou-me pouco antes de se  abrir num sorriso cansado e pueril !
-  Quanto custa, Senhora ?
-  Quinze reais !
-  Quanto  mesmo ? Só quinze ?
-   Quinze reais ! O banheiro é no fim do corredor. Já levo o ventilador pro Senhor, Seo...?
-   Marconi ! Meu nome é Marconi !
-   Sim, já levo o ventilador e cobertas limpas.
Aquela mulher que parecia ter sessenta anos, teria uns 45 no máximo. Reparei na sala um menininho duns 10 anos dormindo no velho estofado em que estivera Don’Ana.
Ela sumiu-se na penumbra do corredor de luzes de 15 watts. Reparei então que a casa era recheada de litografias de santos. Entre elas reluzia a imagem desatual de uma mulher que já foi bonita. Fotografias em preto e branco, ela estava montada numa motocicleta, com calças boca de sino e um ar adolescente. Noutra parecia participar de um desfile de Sete de Setembro. Ela fora bonita ! Onde estaria o marido ? Mulheres de vida fácil, suspeitei. As que se dão bem terminam com uma pensãozinha na beira da estrada.
- Seo Marconi, aqui estão os lençóis, o ventilador,  as toalhas e um par de sandálias, são pequenas mas devem servir !
-  Não carecia de cuidados, não ! Obrigado ! Don’Ana !
-  Boa Noite !
Acomodei-me como pude no quartinho. Troquei de roupa e rumei para o banho. Água gelada. Assim me senti mais vivo ! O banheiro era bem asseado. Apenas uma porção de produtos de beleza destacavam a presença feminina..
Passei pela sala de estar rapidinho, Don’Ana  ante a televisão parecia noutro mundo ! Acariciava a cabeça do menininho sobre seu colo !
- Tem café fresco na garrafa ! Na sala de janta ! Pode se servir !
Lembrei-me de que adorava café ! Segui para a cozinha, outras fotos de Don’Ana com um bebezinho no colo, que deveria ser aquele garotinho !
Um raio iluminou a noite, mas no trovão não veio ! A chuva agora era forte e parecia precipitar-se uma cachoeira sobre  a casinha baixa. Um frio enorme veio e levou a luz elétrica. Sai ladeando as paredes até a sala  de visitas. Don’Ana ressonava.
Alguém bateu à porta ! A proprietária levantou-se delicadamente de modo a não acordar seu filhinho, acendeu um toco de vela  e foi abrir a porta !
- A Senhora dispõe de três quartos, para oito pessoas ?
-  Temos dois, ainda !
-  Tá bem, agente se vira .
Rumei para o meu quarto, a luz tornou, vi então a alvura dos lençóis, todas as peças pareciam saídas de um enxoval de casamento, na parte superior das fronhas, das toalhas, colchas e lençóis um monograma com as letras M e A .  Fora casada . Senti-me envergonhado ! Cochilei levemente. Daí a duas horas acordei com batidas na porta ! Como fossem insistentes, fui olhar !
- O Senhor tem quarto para três pessoas ?
Don’Ana dormia.
- Não, Senhor ! Não há mais vagas !
Tornei para o meu quarto ! Ouvi piar uma coruja longe ! O barulho dos caminhões que passavam na cidade era incessantes ! Dormi um tanto mais ! Sonhei com uma mulher bonita misto da minha ex-esposa e Don’Ana ! Não me falava nada ! Apenas suspirava e chorava ! Calmamente, como se ela chovesse !  Revi meus filhos, desalinhados e tristes. Estúpido, por orgulho e vaidade tudo se perdeu, como estaria Anastácia, no frescor dos seus 25 anos  ?
Acordei sobressaltado com uma goteira imaginária que se depositava na minha cama ! Me recompus do susto. Fui tomar água na cozinha . Passando pela sala ouvi um gemido. A mulher chorava baixinho tendo acariciando a cabeça da criança sobre o colo !
- A Senhora está se sentindo  bem ?
Simulou estar dormindo.
Três da manhã um galo desarrazoado já cantava ! Uma motocicleta parou em frente do São Domingos ! Vozes em cochicho .Bateram na porta. Corri para que não acordassem a pobre senhora !
- Boa Noite ! Abra a porta, por favor !
Uma moça bela, alcoolizada, os cabelos molhados e em desalinho fixou-se em meus olhos e tornou a pedir :
- Abra a porta, por favor !
- Não há vagas, minha filha !
- Sorriu como só minha  Anastácia sorria ! Fuzilou-me com um olhar gelado e me disse :
- Eu sou Anastácia, filha da proprietária ! Mãe daquele menininho ali no colo de minha mãe ! Abra a porta, por favor !
Deixei a chave cair ! Vi na Anastácia de Don’Ana a minha Anastácia, decadente e abandonada !
Estaria dormindo ? Não sei, abri a porta irrefletidamente ! A moça entrou, tomou o menininho sonolento pelo braço, lançou para a mãe um olhar cheio de amor e ódio !
- Boa noite, mamãe !
- Boa noite, ’Nastácia ! Cuida bem de Andrezinho ! Ele quis te esperar até agora !
Fui até a cozinha. Sobre a geladeira assustei-me com uma fotografia que parecia minha, mas era de um matuto com minhas feições,   deveria  ter sido o dela.
Esperei que Don’Ana voltasse a cochilar, o dinheiro que eu tinha deixei todo debaixo do meu travesseiro. Deixei pra trás minha bagagem, minhas certezas e mágoas. Saindo, agasalhei Don’Ana que chorava na sala, parti silenciosamente pela madrugada, carregando a vontade de recomeçar e as sandálias 37  da pobre  Anastácia
Marconi Barros
Enviado por Marconi Barros em 08/05/2008

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